O Quarto Passo diz: “Fizemos minucioso e destemido inventário
moral de nós mesmos”.
A satisfação dos instintos
naturais é fonte, também natural, de prazer.
O alcoolista é aquele indivíduo que não consegue obter naturalmente
prazer através da satisfação de seus instintos e segue, portanto, dois caminhos
diferentes: um que leva à exacerbação de
seus instintos ou a uma necessidade vital de permanente satisfação destes para
obtenção de um prazer básico; e outro
que leva ao uso do álcool para a obtenção do mesmo prazer básico a partir da
satisfação natural de seus instintos.
Enfim, ou o alcoolista exagera na satisfação de seus próprios instintos
ou inclui o álcool em seu ritual de prazer, ou mesmo, ao final do processo,
ambas as coisas, quando nem uma nem outra forma são suficientes para gerar
aquele prazer básico.
A tendência é sempre esse
indivíduo optar, de acordo com a sua personalidade, por um, ou pouco mais de
um, instinto natural a ser satisfeito, geralmente aquele que mais se relaciona
com sua formação, moral e cultural, e estilo de vida.
Assim, com ou sem álcool,
inicia-se o processo psicopatológico do alcoolismo. Valores, conceitos e, por conseguinte,
comportamento e relações sociais destinam-se exclusivamente à obtenção de
prazer (por que não dizer alívio?) e
sofrem, progressivamente, graves deturpações.
Com a inclusão do álcool (utilizado, aí, com finalidade patológica) e de todas as contingências físicas,
psíquicas, sociais e morais de seu abuso, é perfeitamente previsível a
deterioração global dos elementos pessoais e interpessoais do indivíduo.
A partir da abstinência, é comum
que o processo se reinstale ou se perpetue já que a fonte suplementar de
prazer, o álcool, não mais está presente.
Alcoolistas em recuperação são geralmente compulsivos por algo como
trabalho, sexo, religião, dinheiro, comida, relacionamentos ou outras fontes de
prazer. E é evidente que todos esses
exageros levam sempre a relações distorcidas com o objetivo de prazer. Caráter e comportamentos patologicamente
construídos sob o estigma da necessidade compulsiva de satisfação pessoal (ou
alívio), são características do alcoolista.
A única maneira de reverter esse
quadro, após a interrupção do uso do álcool, é através de profunda reformulação. Parar de beber significa, apenas, remover da
cena principal um objeto importante na caracterização do quadro mas, para
modificar-se o enredo, deve-se reavaliar todos os papéis e cenários.
É muito comum que, em função
daquela necessidade básica de prazer, o alcoolista tenha desenvolvido
artifícios psicopatológicos como desonestidade, egocentrismo, megalomania e
outros, assim como protegido sua própria fragilidade atrás de mecanismos
racionais ou inconscientes de defesa. É
muito mais comum ainda que, retirado o álcool, permaneçam todas essas
características, até que algo seja feito para modificá-las. Travar contato com todas elas é, pois,
fundamental para a concretização de uma proposta efetiva de abstinência
alcoólica.
Deve-se ter em mente também que é
imperiosa a necessidade de uma nova fonte de prazer, sem a qual o desconforto,
ocasionado pela abstinência alcoólica, pela perda do recurso mágico de alívio e
pelos conflitos pessoais e sociais, tornar-se-á insuportável e a recidiva
inevitável.
A proposta do Quarto Passo é,
justamente, além de iniciar efetivamente a reformulação através da auto avaliação,
fornecer, por meio do movimento psíquico (mobilização), uma fonte alternativa
de prazer (pelo simples fato de estar tentando iniciar um processo de mudança e
busca de melhor qualidade de vida). A
fonte espiritual ou psicossocial de prazer inicia seu fornecimento a partir da
eclosão desse ciclo: tentar mudar para
poder crescer, assim como crescer para continuar tentando. O prazer, aí, é endógeno e retro injetável.
O Quarto Passo é, portanto, uma
proposta prática de ação. Depois de
adquirida, consistentemente, uma consciência da necessidade de mudar; após ter
vislumbrado perspectivas objetivas de ajuda nesse sentido; após ter arriscado
acreditar na eficácia dessa ajuda, eis que é apresentada, ao alcoolista, uma
maneira concreta e prática de iniciar o processo de mudança.
Como já foi dito, um programa de
teor comportamentalista depende muito de motivação (submissão e aceitação,
derrota e humildade) e a cada passo que
se avança, aumenta a necessidade de aprofundamento nos anteriores. Isso se torna óbvio pelo consequente e
inevitável afastamento da fonte inicial de motivação (o sofrimento agudo) que
se torna, consciente e inconscientemente, obscurecida pelo tempo, pela memória
e pelos mecanismos psíquicos de defesa.
A fonte básica de motivação está sempre na realidade, passada e
presente, que cerca o alcoolista, ou seja, na desestruturação de suas relações
pessoais e interpessoais.
Caracterizá-las objetivamente é objeto e motivo do Quarto Passo, para
que haja, concretamente, razão e possibilidade de modificá-las.
Alcoólicos Anônimos fala em
meticulosidade e perenidade e estas são palavras-chave para um Quarto Passo
eficaz. Quanto maior a motivação básica,
mais meticulosa e profunda será a auto avaliação e, evidentemente, melhores
serão os resultados e benefícios desta, que o são, por si, progressivamente
utilizáveis como fontes auxiliares de motivação para a continuidade do
processo.
O papel do profissional, nessa
etapa do tratamento, é fornecer ao paciente meio concreto para desenvolvimento
desse inventário. Apresentar roteiros
objetivos, questionários, identificar características morais e atitudinais a
serem avaliadas, reforçar a reativar motivações, incentivar a participação em
atividades terapêuticas grupais para que novos elementos sejam reconhecidos e
estar disponível, fazem parte de uma atitude facilitadora e compreensiva (nunca
protecionista e permissiva), bastante útil em um momento tão ansiogênico e
doloroso.
O apoio de um grupo terapêutico
homogêneo e integrado é, também, fundamental para promover alívio e conforto,
além de incentivo.
O restante depende,
exclusivamente, do próprio alcoolista.
Não custa salientar, mais uma vez, que a cada interrupção do processo
terapêutico por recidiva deve-se, sempre, retornar ao início do mesmo.
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