terça-feira, 10 de janeiro de 2017

007- 4º Passo de A.A. (Visão Terapêutica)



O Quarto Passo diz:  “Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos”.

A satisfação dos instintos naturais é fonte, também natural, de prazer.  O alcoolista é aquele indivíduo que não consegue obter naturalmente prazer através da satisfação de seus instintos e segue, portanto, dois caminhos diferentes:  um que leva à exacerbação de seus instintos ou a uma necessidade vital de permanente satisfação destes para obtenção de um prazer básico;  e outro que leva ao uso do álcool para a obtenção do mesmo prazer básico a partir da satisfação natural de seus instintos.  Enfim, ou o alcoolista exagera na satisfação de seus próprios instintos ou inclui o álcool em seu ritual de prazer, ou mesmo, ao final do processo, ambas as coisas, quando nem uma nem outra forma são suficientes para gerar aquele prazer básico.

A tendência é sempre esse indivíduo optar, de acordo com a sua personalidade, por um, ou pouco mais de um, instinto natural a ser satisfeito, geralmente aquele que mais se relaciona com sua formação, moral e cultural, e estilo de vida.

Assim, com ou sem álcool, inicia-se o processo psicopatológico do alcoolismo.  Valores, conceitos e, por conseguinte, comportamento e relações sociais destinam-se exclusivamente à obtenção de prazer (por que não dizer alívio?)  e sofrem, progressivamente, graves deturpações.  Com a inclusão do álcool (utilizado, aí, com finalidade patológica)  e de todas as contingências físicas, psíquicas, sociais e morais de seu abuso, é perfeitamente previsível a deterioração global dos elementos pessoais e interpessoais do indivíduo.

A partir da abstinência, é comum que o processo se reinstale ou se perpetue já que a fonte suplementar de prazer, o álcool, não mais está presente.  Alcoolistas em recuperação são geralmente compulsivos por algo como trabalho, sexo, religião, dinheiro, comida, relacionamentos ou outras fontes de prazer.  E é evidente que todos esses exageros levam sempre a relações distorcidas com o objetivo de prazer.  Caráter e comportamentos patologicamente construídos sob o estigma da necessidade compulsiva de satisfação pessoal (ou alívio), são características do alcoolista.

A única maneira de reverter esse quadro, após a interrupção do uso do álcool, é através de profunda reformulação.  Parar de beber significa, apenas, remover da cena principal um objeto importante na caracterização do quadro mas, para modificar-se o enredo, deve-se reavaliar todos os papéis e cenários.

É muito comum que, em função daquela necessidade básica de prazer, o alcoolista tenha desenvolvido artifícios psicopatológicos como desonestidade, egocentrismo, megalomania e outros, assim como protegido sua própria fragilidade atrás de mecanismos racionais ou inconscientes de defesa.  É muito mais comum ainda que, retirado o álcool, permaneçam todas essas características, até que algo seja feito para modificá-las.  Travar contato com todas elas é, pois, fundamental para a concretização de uma proposta efetiva de abstinência alcoólica.

Deve-se ter em mente também que é imperiosa a necessidade de uma nova fonte de prazer, sem a qual o desconforto, ocasionado pela abstinência alcoólica, pela perda do recurso mágico de alívio e pelos conflitos pessoais e sociais, tornar-se-á insuportável e a recidiva inevitável.

A proposta do Quarto Passo é, justamente, além de iniciar efetivamente a reformulação através da auto avaliação, fornecer, por meio do movimento psíquico (mobilização), uma fonte alternativa de prazer (pelo simples fato de estar tentando iniciar um processo de mudança e busca de melhor qualidade de vida).  A fonte espiritual ou psicossocial de prazer inicia seu fornecimento a partir da eclosão desse ciclo:  tentar mudar para poder crescer, assim como crescer para continuar tentando.  O prazer, aí, é endógeno e retro injetável.

O Quarto Passo é, portanto, uma proposta prática de ação.  Depois de adquirida, consistentemente, uma consciência da necessidade de mudar; após ter vislumbrado perspectivas objetivas de ajuda nesse sentido; após ter arriscado acreditar na eficácia dessa ajuda, eis que é apresentada, ao alcoolista, uma maneira concreta e prática de iniciar o processo de mudança.

Como já foi dito, um programa de teor comportamentalista depende muito de motivação (submissão e aceitação, derrota e humildade)  e a cada passo que se avança, aumenta a necessidade de aprofundamento nos anteriores.  Isso se torna óbvio pelo consequente e inevitável afastamento da fonte inicial de motivação (o sofrimento agudo) que se torna, consciente e inconscientemente, obscurecida pelo tempo, pela memória e pelos mecanismos psíquicos de defesa.  A fonte básica de motivação está sempre na realidade, passada e presente, que cerca o alcoolista, ou seja, na desestruturação de suas relações pessoais e interpessoais.  Caracterizá-las objetivamente é objeto e motivo do Quarto Passo, para que haja, concretamente, razão e possibilidade de modificá-las.

Alcoólicos Anônimos fala em meticulosidade e perenidade e estas são palavras-chave para um Quarto Passo eficaz.  Quanto maior a motivação básica, mais meticulosa e profunda será a auto avaliação e, evidentemente, melhores serão os resultados e benefícios desta, que o são, por si, progressivamente utilizáveis como fontes auxiliares de motivação para a continuidade do processo.

O papel do profissional, nessa etapa do tratamento, é fornecer ao paciente meio concreto para desenvolvimento desse inventário.  Apresentar roteiros objetivos, questionários, identificar características morais e atitudinais a serem avaliadas, reforçar a reativar motivações, incentivar a participação em atividades terapêuticas grupais para que novos elementos sejam reconhecidos e estar disponível, fazem parte de uma atitude facilitadora e compreensiva (nunca protecionista e permissiva), bastante útil em um momento tão ansiogênico e doloroso.

O apoio de um grupo terapêutico homogêneo e integrado é, também, fundamental para promover alívio e conforto, além de incentivo.


O restante depende, exclusivamente, do próprio alcoolista.  Não custa salientar, mais uma vez, que a cada interrupção do processo terapêutico por recidiva deve-se, sempre, retornar ao início do mesmo.



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