O Décimo Passo diz: “Continuamos fazendo o inventário pessoal e
quando estávamos errados nós o admitíamos prontamente”.
Como diz claramente o texto de
“Os Doze Passos” de Alcoólicos Anônimos, a prática dos nove primeiros passos
prepara o indivíduo para uma nova vida.
Evidentemente, é necessário muita disposição para tal e muito trabalho
foi realizado para poder romper os principais vínculos elaborados com o objeto
de dependência. Graves deturpações do
comportamento e das relações interpessoais, que transformaram o passado do
alcoolista em um fardo insustentável a ponto de causar o sofrimento necessário
à humilhante admissão de fracasso, tiveram de ser revistas e objetivamente
encaradas.
A partir de então, de acordo com
a profundidade e a seriedade com que foram vivenciadas essas nove etapas do
tratamento, resta ao paciente, efetivamente, conviver com seu momento presente.
Livre dos principais entraves
passados, objetivos e subjetivos, restam dinamizar o processo em termos
atuais. Consequências importantes da
descaracterização da personalidade, da imaturidade emocional e do imediatismo
serão, também objetiva e subjetivamente, enfrentadas pelo alcoolista em seu
processo de recuperação. Inicia-se, a
partir de então, um novo tipo de convívio com suas emoções. Evidentemente, emoções mais limpas, livres do
acúmulo de culpas, remorsos e ressentimentos passados, mas igualmente
desconfortáveis pelo inusitado.
Compreende-se que o uso de psicofármacos inibe, cronicamente, o contato
com os sentimentos, tornando-os extremamente desconfortáveis. Vivenciar raiva, paixão, alegria, tristeza,
angústia, ansiedade, sem paliativos, exige um processo, igualmente demorado, de
aprendizado. A necessidade de alívio é
constante e o imediatismo é um risco. É
necessário possibilitar, diante de tantas dificuldades, um saldo positivo para
o paciente.
Como fazê-lo?
Sabemos que a dinâmica do
processo de recuperação mantém-se pelos seus próprios ganhos, objetivos e
subjetivos. A capacidade de enxergar
tais ganhos está na abrangência do referencial do indivíduo. Esse referencial está moldado pela
consciência do seu passado e das consequências deste em seu presente. O ganho será vivenciado como tal, na medida
em que represente progresso em relação a esse referencial.
Em tudo isso está embutida a
importância dos passos anteriores para a elaboração dessa consciência
(referencial) e da motivação em função desta.
Está implícito, também, que as dificuldades presentes representam empecilhos,
mais ou menos graves, para a manutenção dessa dinâmica.
Portanto, concretamente, o Décimo
Passo trata de uma maneira objetiva de trabalhar essas dificuldades presentes
antes que passem a representar entraves sérios.
As chamadas armadilhas podem e devem ser desfeitas, antes que o
desconforto originado seja mais forte que a perspectiva de alívio e o indivíduo
recorra ao recurso já conhecido, o álcool.
Os sentimentos devem ser
trabalhados de forma a não representarem ameaças e sofrimento. O indivíduo pode, através de um contato
sistemático com suas emoções, evitar as deturpações, o acúmulo e as reações
patológicas, todos geradores de maior desconforto.
O ideal para isso é o
autocondicionamento. Um contato
frequente, se possível diário, com essas emoções, é fundamental para uma
convivência mais saudável com elas e para um maior aprendizado sobre si
próprio. Uma análise cuidadosa e
detalhada dos fatos e motivos envolvidos é importante para a elaboração de um
conhecimento mais amplo de suas reações.
O fato de conhecer-se, aprendendo sobre si próprio a partir do contato
com suas emoções e reações, possibilita ao alcoolista avaliar seu momento sem
permitir que falhas acumulem-se e permaneçam, cronicamente, distorcendo seu
comportamento. Um episódio de raiva pode
ser analisado como despropositado e, a partir de então, objetivamente
reformulado, evitando reações igualmente descabidas, consequentes entraves ao
relacionamento, e mais emoções desconfortáveis e desnecessárias.
Neste momento, o admitir o
despropósito da emoção não significa fracasso e sim um importante mecanismo de
facilitação da convivência social. A
partir do momento em que o alcoolista é capaz de fazê-lo, torna-se possível,
para ele, elaborar seu comportamento de maneira saudável, evitando problemas
desnecessários e maior desconforto.
O alívio e o prazer estão
implícitos nesse movimento pela grata sensação de estar tentando melhorar, o
que não implica, evidentemente, em acertar sempre. Gratificar o convívio interpessoal, através
de reações saudáveis às emoções despertadas pelos relacionamentos, é tarefa
muito difícil, principalmente para o alcoolista, em função de distorções
emocionais e comportamentais crônicas.
Seria utópico desejar que de uma hora para outra ele fosse capaz de
relacionar-se de forma saudável e prazerosa.
Ele pode, apenas, tentar. E
através da motivação para essa tentativa, procura-se possibilitar, pelo
inventário diário, o acesso aos progressos e dificuldades desse processo e, com
base neles, incentivar e facilitar as próximas tentativas.
Evidenciar ganhos enquanto estes
não são tão evidentes e possibilitar a conquista de novos enquanto se processa
a reeducação social, esses são os objetivos do Décimo Passo.
O profissional e o grupo
terapêutico são importantes elementos para auxiliar o paciente nesse
inventário. A clareza, a objetividade e
a imparcialidade, além da possibilidade de um espaço para catarse e obtenção de
alívio, são cada vez mais relevantes.
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